a rua é da gente

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quarta-feira, 28 de março de 2012

On The Road, a bíblia da geração beat ganhou o cinema.


                                                                                

     Que jovem nunca sonhou em pôr o pé na estrada apenas com uma mochila nas costas e alguns trocados no bolso? Foi o que fez o escritor Jack kerouc (1922-69),  que embarcou de carona em uma série de viagens pela América, com descidas ao México, em companhia de Neal Cassidy, entre 1947 e 1951, quando a febre de consumo e a moral conservadora tomou a classe média americana. No rastro de uma bem-sucedida política econômica, implantada por um governo autoritário - que, nas horas vagas, caçava bruxas, ou seja, esquerdistas, simpatizantes etc e desrespeitava os direitos civis.
     Kerouc, expoente da geração beat ou beatnik, uma turma de artistas talentosos que desprezava o american way of life (estilo de vida americana) e se rebelava contra a política repressiva do período macartista, pôs no papel, em abril de 1951, as recordações dos anos de vida na estrada e pronto. Em apenas 3 semanas, ele escreveu o romance autobiográfico que, só pra começar, mudou o modo de se encarar e viver a vida e a forma de narrá-la: On The Road, que acaba de ganhar  uma versão cinematográfica rodada pelo diretor Walter Salles, que vai entrar em cartaz no mês de junho.
   Salles, aliás, concretizou o sonho acalentado por ele, e outros cineastas, havia anos de levar para a telona as aventuras e desventuras de dois amigos na estrada em busca da beleza no mundo, de si mesmos e de Deus. Sal Paradise, alter-ego de Kerouc, e Dean Moriarty, inspirado em Neal Cassidy, são as personagens centrais da trama, povoada por uma legião de marginalizados, alheia ao sonho americano.
   Sal é um bolsista na universidade, que mora com a tia, enquanto tenta escrever um livro, e tem os melhores e mais loucos amigos que um outsider poderia desejar. Até que, um dia, conhece o fascinante e alucinado Dean, com passagens em reformatório e cadeia por roubo de carro e vadiagem, com quem compartilha seu amor por literatura e jazz, e, em especial, a sua ânsia de correr pelo mundo.
    Juntos, eles atravessam o interior dos Estados Unidos, mostrando paisagens e cidades do interior do país, e se deparam com todo tipo de gente, de trabalhadores itinerantes e andarilhos à vagabundos e viciados, numa jornada que também é uma viagem de auto-conhecimento, tanto das personagens, como de uma geração, que buscava desfrutar de experiências autênticas. E, de quebra, acreditava que os párias da sociedade, por viverem fora dos padrões, conheciam alguma verdade da existência.
    Aliás, essa identificação com figuras marginais é a base da literatura beat, que, além de Kerouc, encontra no poeta Allen Ginsberg e o escritor Willian Burroghs os seus grandes autores. Enquanto Kerouc era fascinado pelos vagabundos e andarilhos que cruzam o país em trens de carga, Ginsberg era atraído por homossexuais, delinquentes e incompreendidos em geral, e Burroghs, por sua vez, vivia entre criminosos e viciados.
    On the road, publicado em 1957, se tornou um fenômeno literário, que rompeu com os padrões da época e criou uma escrita mais livre e expressiva. Marcada por um texto sem parágrafos, ortografia ortodoxa e pausas no fraseado para soar  como um solo de sax de Charlie Parker. Mais ainda. O impacto desse romance foi tão grande que provocou uma revolução cultural e de costumes que influenciou um punhado de gente e diversos movimentos e manifestações artísticas dos anos 60 e 70: do hippie ao punk, passando pelo bebop, pop, rock e contracultura.
    Não bastasse, esse romance também inspirou muitos a ganhar o mundo, como, por exemplo, o cineasta Hector Babenco, de Carandiru etc, o cantor e compositor Bob Dylan e Chrisse Hynde, do Pretenders, que até fugiram de casa após lê-lo.
    Pode-se dizer que o mundo nunca mais foi o mesmo depois de On The Road. E, se você é ou foi um desses jovens que sonhou em cair na estrada é bem possível que só teve esse sonho porque, trocentos anos atrás, um sujeito talentoso arreganhou os dentes para o status quo e escreveu On The Road para mostrar que a vida poderia ser diferente.
( Este livro foi digitalizado e distribuído gratuitamente pela equipe Digital Source http://groups.google.com/
group/Viciados_em_Livros)

terça-feira, 6 de março de 2012

" Vou de Zé Pretinho ", diz Gilberto Gil, em entrevista antiga e inédita.


         
    No início dos anos 90, eu e outros jornalistas fizemos uma matéria sobre Deus para a revista Trip. Falei com diversas pessoas e, entre elas, com Gilberto Gil, que entrevistei no saguão do hotel Cad'oro, em São Paulo. Conversamos cerca de uma hora e adorei nosso papo e, claro, Gil. É que o ex-ministro da cultura, além de artista genial, homem afável e, a propósito, nada metido a besta, sempre teve o dom de me surpreender com suas reflexões sobre n temas e por uma simples razão: ele enxerga aspectos que me passam despercebidos e amplia meu campo de visão e de compreensão.
    Eu, infelizmente, precisei enxugar a entrevista ao máximo, descartando trechos com o coração na mão, para adequá-la à página. Mostrei esse material inédito para o editor de uma antiga e extinta publicação, especializada em entrevistas, que propôs que eu fizesse um entrevistão com Gil. Topei na hora, claro. Entrei em contato com o artista e ele me disse que estava entrando em férias, mas poderia me atender, após o ano novo, em sua casa, em Salvador.
  Como tinha lugar para ficar  na cidade e, ainda, desfrutar de hospedagem 10 estrelas, graças a generosidade de Bela Szanieski, professora de Física aposentada da UBFA - mãe de Dagmar Serpa, uma antiga amiga, além de jornalista brilhante - e aos sucos e quitutes de Noemia, eu decidi ir por minha conta e, depois, acertaria as despesas com a revista. Mais ainda. Aproveitaria a viagem para entrevistar, pessoalmente, Pola Galé, cineasta baiano, para a revista SET.
    Ao desembarcar na casa de Bela, eu liguei para Gil e agendamos a entrevista, que foi realizada em duas rodadas. No segundo e último dia, eu quase cai dura quando ele e Flora, sua mulher, me contaram, assim que me receberam em sua casa, que alguns artistas tinham até processado essa extinta revista. Até então, eu não sabia que a publicação tinha trocado a boa reputação pela fama de distorcer e inventar declarações dadas por seus entrevistados.
   Espantada com a novidade, eu nem sabia o que dizer. Foi, então, que o compositor baiano me deu a solução para resolver o enrosco. Ele concluiria a entrevista, mas me pediu para dizer ao diretor de redação que lhe enviasse um fax, comprometendo-se a publicar a matéria que seria escrita e entregue por mim.
      Depois de mais de duas horas de conversa pra lá de agradável, eu acabei indo parar na cozinha da casa e pus, literalmente, a mão na massa: fiquei fazendo bolachinhas com Flora, a meninada, amigas e funcionárias do casal. E, de quebra, levei um susto quando vi Gil acender um cigarro Free. Era capaz de jurar de pés juntos que ele, adepto ou ex-adepto da macrobiótica, além de não fumar, detestasse esse incenso do diabo. Tanto é que eu, fumante de respeito, não tinha nem sequer me atrevido a lhe pedir permissão para acender um cigarro durante nossas entrevistas.
    Bem, retornei à São Paulo e, uma semana depois, liguei para a revista e Gil  para saber  se o diretor tinha enviado a declaração, em que se comprometia não alterar o conteúdo da entrevista. Soube, então, que o ex-ministro havia recebido um fax do editor-executivo e não do diretor, que estava em Paris havia mais de um mês e, a essas alturas, deveria ter sumido junto com o chá.
    Diante disso, eu não entreguei a matéria. Não devia nenhum tostão para a revista e tive receio de o diretor usar o meu trabalho para fazer alguma sacanagem com Gil. Preferi evitar o risco.
    Enfim, guardei essa entrevista e achei que nunca iria tirá-la da gaveta. Ontem, eu vi Gilberto Gil no programa de Sara, no GNT, e me lembrei dela. Eu a reli, gostei, e, apesar de ter perdido parte dela e deixado de explorar uma ou outra questão, decidi publicá-la nesse espaço.
     Nela, ele fala um pouco sobre sua vida familiar, seu temperamento, trajetória profissional, o tropicalismo e Deus. Vale destacar que eu suprimi trechos em que Gil falou sobre política e a cena musical da época, além de outros assuntos muito datados, e mudei o formato original - perguntas/respostas. E, Aff!,  finalmente, a entrevista.

     Sobre a prole generosa.

    Minha mãe diz que eu, aos 2 anos, reiterava com frequência que queria ser músico e pai de filho. A quantidade, entretanto, foi uma decorrência circunstancial das decisões maternas. Nunca disse: " vamos ter um filho". Eu sempre me defrontei com a notícia: " estou grávida, estamos tendo um filho! Ao que respondia, " então, estamos tendo um filho? Que venha".
   Tivemos oito. Com Belina, com quem fui casado dois anos, eu tive Nara e Marília. Depois, me casei com Nana Caymi, e, provavelmente, teríamos filhos se ela já não tivesse as trompas ligadas. Em seguida, eu casei com Sandra, com quem tive Pedro, que já morreu, Preta, que acaba de me dar um neto, e Maria. Com Flora, tive mais três: Bem, Bela e José.


     Sobre os filhos

     São todos bons meninos. Os meninos são todos sãos. Somos amigos, e tudo entre nós sempre descambou para o plano do fraterno, da camaradagem.
    Minha paternidade tem aspectos universais e muito particulares. Outro dia, eu estava na sala de embarque do aeroporto de Recife e fiquei observando um rapaz brincando com seus dois filhos. O pai com aquela coisa com os filhos. Os filhos com aquela coisa com o pai. Pai e filhos sendo objetos de idolatria. Eu e meus filhos nunca tivemos esse tipo de relação, com exceção de Nara, minha primeira filha, que me idealizou um pouco na primeira infância. Falava que o pai era o simbolo do amor, a primeira pessoa que amou na vida. Fora ela, não percebo em nenhum deles o desenvolvimento dessa coisa natural e autorizada da idolatria.
    Eu tenho lhes transmitido automaticamente a minha liberdade de hábitos e costumes, em relação aos de meus pais. É que cheguei ao mundo adulto em um momento de grandes transformações, de profundas discussões sobre relacionamento familiar, hábitos pessoais etc. E acabei sendo formado por uma escola muito liberal, de permissividade, democracia e pluralidade.  Então, essa é a minha história e é ela que devo passar a eles.  
   O que eu deveria reparar, caso isso fosse possível, seria o modo de passá-la, que, talvez, variasse se eu tivesse outra natureza. Talvez, eu desejasse ser um homem com uma índole diferente. Eu, por exemplo, tenho muita dificuldade de dizer não, e ela se estende para o relacionamento com meu filhos. Talvez gostasse de ter capacidade de dizer não, de desagregar e contrariar.
  Hoje, ao repassar os eventos ao longo da minha vida, eu penso que talvez tivesse me poupado de sacrifícios e constrangimentos desnecessários. Quando você tem dificuldade de dizer não aos outros, também tem dificuldades de dizer não a si mesmo.

    Sobre o Temperamento

    Sou muito paciente, muito tolerante. Tenho uma grande capacidade de ceder aos impulsos e, como consequência, acabo tendo dificuldades para estabelecer rotina, disciplina. Eu vou começar, por exemplo, a gravar em abril e já deveria estar concentrado no trabalho. Mas, ainda, não consegui reunir forças para recuperar o hábito da disciplina para fazê-lo. Ainda estou me desculpando porque tive um ano de muito trabalho e estou em férias. Mas, frequentemente, me sinto culpado pela indisciplina. Adio muito a entrada nos processos e me culpo por isso. Se pudesse reformar o projeto, eu seria mais duro comigo e com o próximo.

  Sobre essa disponibilidade

    Eu atendo a todos. Agora, estou em férias, mas se alguém, por exemplo, me chamar para ir à Brasília, fazer sei lá o quê, eu me sacrifico um pouquinho e vou. Mas, o que eu vou fazer lá mesmo? Qual é a minha contribuição? Ah! quer dizer que é para eu ir de Zé Pretinho, para animar a festa? Então, eu vou de Zé Pretinho. Fulano está indo porque vai apresentar uma proposta, sicrano vai discutir uma questão e Gil? Vai fazer o quê? Gil vai animar a festa.
   Flora acha que eu sou muito abusavel, que proporciono demasiada desfrutabilidade do outro em relação a mim. Eu, raramente, digamos assim, acuso o golpe dessas hiperinvestidas. Em geral, sou concessivo, é da minha natureza. Sou como coração de mãe: sempre cabe mais um.

   Sobre as ex-mulheres

   Temos uma relação química-alquímica muito interessante: de amor que virou amizade, que virou amor e realimenta a amizade. É de amor sustentado pela amizade: um amor ecológico, moderno, auto-sustentado.
  Veja: sempre me coloquei como meta o propósito de realizar a amizade com todas. Inclusive, porque temos filhos .... então, acabou. Filhos são traços de união, são hifens que ligam as palavras entre nós e as nossas vidas necessariamente.
   Não houve dificuldade porque, felizmente, nós nunca brigamos. Nunca me separei por briga, desentendimento. Me separei por transmutação do afeto. É o que falo na música Drão: a semente tem que morrer para germinar. Se há um culpado, sou eu, e Deus salve a minha confissão. Sempre esperei que dessa minha confissão pudesse nascer a compaixão entre nós todos. E temos desenvolvido  esse sentimento, que vem substituindo a paixão, o início de tudo.

    Sobre as separações

    Sofri sempre que tive que me separar, de ir embora para encontrar o amor em outro lugar. Sofri, sofri, sofri. Mesmo assim, o impulso para a transformação é mais forte que o apelo para a permanência.

    Sobre ciúme

    Ele praticamente desapareceu da minha vida. Não sei por quê. Talvez porque eu não tenha motivos. Aprendi, também, a deixar de ser ciumento com as filhas, que vão crescendo e vivendo seus próprios amores. Eu nunca tive problemas com namorados e genros. Eles sempre chegaram e levaram numa boa.  E quando resolvem consolidar o compromisso, eu tendo, em geral, a gostar mais deles, por identificação: eles se tornam iguais a mim. Estão se comprometendo também, partilhando e compartilhando as responsabilidades. Minhas fantasias de paternidade são meio assim.

    Sobre a relação entre as mulheres

    Se tiveram ciúmes, resolveram o problema entre elas. Nunca houve cenas nem algo que tivesse sido objeto de observação, de visibilidade. Nada que tenha se transformado em atos e fatos. Elas são amigas, graças a Deus, se ajudam e se administram em conjunto
    No meu aniversário de 50 anos, as quatro estavam presentes e até tiramos uma foto. Fiquei muito constrangido, acabrunhado, mas não tive como me safar de tirar aquela foto: eu e elas. O que eu vou fazer? Sou de câncer: vivo a vida cercado de mulheres.

    Sobre a descoberta do talento musical

   Foi por volta dos 17, 18 anos. Eu comecei a tocar acordeon em Os Desafinados, um conjunto de bairro. Mas troquei esse instrumento pelo violão quando ouvi João Gilberto e a Bossa Nova. Fiquei tão encantado com a canção popular que descobri que queria ser compositor. Eu senti necessidade de reproduzir com minhas próprias linguagens aquele universo que a bossa nova revelou de música popular: de samba misturado com a canção romântica e ingredientes do jazz. Enfim, aquela grande mescla propiciada pela bossa nova.

    Sobre Caetano e tropicalismo.

   Conheci Caetano, em 1963, 64, e ele já se interessava por literatura, teatro, artes em geral, e acompanhava as produções de vanguarda: nouvelle vaugue, cinema novo, neorealismo, literatura beat e a revolução de costumes americana.
   Ele fazia uma leitura do que estava acontecendo e incorporava aos seus hábitos. Era uma pessoa moderna, enquanto eu vivia no circuíto mais clássico de classe média. Não lia as publicações  de vanguarda, não assistia filmes de arte nem tinha interesse por teatro.
  Tinha 17, 18 anos e gostava de ir á praia e paquerar as meninas nos bailes. Já compunha, gostava de bossa nova e me apresentava em programas de TV,  mas a minha vida se encaminhava para um processo tradicional de classe média. Foi a partir de de meu encontro com ele que passei a me interessar pela multiplicidade do fenômeno cultural da época. Senão fosse ele, eu não teria me interessado.Ou, talvez, tivesse chegado ai por outra via, mas, o fato, é que foi através de Caetano.
    O tropicalismo surgiu no rastro da revolução de costumes, da produção cultural e filosófica da época. Essas novas ideias quebraram a nossa cabeça, e então decidimos reunir os cacos e traduzi-los em música, poesia, manifesto, ensaio, reflexão, discurso e tudo o mais que foi feito por nós: eu, Caetano, Capinam, Torquato, entre outros. Queria fazer uma música que correspondesse ao nosso recém surgido interesse por esse mundo da arte moderna.
    Vale lembrar que, naquele momento, as Escolas de Música, Dança e Teatro da Universidade Federal da Bahia, além do ramo baiano do CPC, da UNE, nos dava acesso a essa multiplicidade de manifestações artísticas e culturais.
    Esse ambiente cultural contribuiu para a tomada de consciência dos problemas sociais e para a produção de uma arte engajada com o processo transformador da sociedade. O interesse político e sociológico fervilhava junto com essas inovações no campo das instituições ligadas a arte e cultura na Bahia. Foi nesse contexto que conheci Caetano e que nasceu o tropicalismo.

    Sobre o impacto do Tropicalismo

    Houve muita resistência e por vários motivos. Do ponto de vista estético -estilístico, a adoção de gêneros musicais híbridos, de novas sonoridades, de certos instrumentos, entre outras inovações musicais, geraram dificuldades de absorção. Tanto por parte dos cultivadores dos gêneros populares clássicos, como para o pessoal da música sinfônica, da bossa nova, do rock. Os setores isolados se sentiram ameaçados, vítimas de uma heresia.
    Cheguei a ser advertido, molestado até pelos colegas da minha geração, que estavam começando conosco. Alguns diziam, o negócio que você está fazendo é uma bobagem. Outros, por sua vez, preferiam desviar do caminho para não falar com a gente.
   O aspecto contestatário da nossa música, o discurso em defesa da diversidade de comportamento e do pluralismo político etc nos rendeu problemas com a área política. Aliás, essa oposição se fez presente desde o Festival da Record, quando eu e Caetano concorremos com as músicas Domingo no Parque e Alegria, Alegria, e acabou desembocando em  nossa prisão e exílio.
    Mesmo assim, a gente decidiu seguir em frente com a nossa proposta. Mas eu sofria. Veja, eu era um rapaz, de vinte e poucos anos, buscando, antes de tudo, ser compreendido. Buscando também comunicar e comungar aquele sentimento de inovação, de aventura com todo mundo. Achava que todos iriam nos entender, e o fato, que assim não fosse, era traumático, constrangedor.
    Quando a oposição, então, se fez clamor contra nós foi um tormento, uma agonia. As mães de família nos repudiavam. Famílias do interior de São Paulo enviavam abaixo-assinado contra o programa Divino Maravilhoso, exibido na Record e apresentado por Gil e Caetano. Somava-se a isso, a ameaça do regime militar e a falta de aceitação de nossos próprios colegas. O que, pra mim, prenunciava uma dificuldade cada vez maior.
    Eu ficava me lembrando do Monte das Oliveiras, vendo se aproximar a hora do sacrifício. Sentia que a gente tivesse de ser sacrificado mesmo. Tive essa paranoia. Isso se chama paranoia! Pensei em desistir, mas o ânimo era muito forte. Sem falar que Caetano era um líder muito determinado, muito cônscio.
Passei a ter medo que a gente acabasse absolutamente sozinhos. O que aconteceu realmente: a gente foi parar na prisão.

    Sobre a idolatria dos fãs

    O auge da tietagem se deu na época dos discos Realce e Luar. Durou uns dois, três anos e passou. Mas não foi nada perto do que acontece com um Roberto Carlos, um Fábio Jr.
   Eu também nunca fui símbolo sexual. É que, em geral, essas idolatrias muito fortes estão ligadas ao cultivo de uma imagem simbólica, que não incorporei a minha personalidade artística.
   Alguns artistas acumulam essa adoração. Eles emitem uma imagem e o público reage. Essa reação é reincorporada, eles investem e reinvestem e vão hipertrofiando aquela imagem. Já outros, como eu, são low profile, até mesmo para evitar essa adoração descaracterizante e paralisante.
   Agora, é evidente que tem um lado da vaidade que é bafejado por essas manifestações de paixão e carinho. O ego infla e tal. Mas, com o avançar da idade, a gente vai perdendo a necessidade de engraxar o sapatinho do ego todo dia para que ele fique impecável. Porque já sabe que é um indivíduo, entre tantos outros, que teve ou não privilégios e oportunidades de contribuição.
  Então, você deixa de precisar de se auto-referir o tempo todo, de medir e pesar o seu valor. Quanto eu tô pesando? Peso mais ou menos que A? Qual é a importância que tenho? Essas necessidades vão se diluindo ao longo da realização de uma obra. O que permanece é o sentimento de que eu participo da vida e da criação, junto com a natureza, as divindades e os homens.
  Eu acho bacana quando as meninos expressam arroubos de paixão. "Ah! eu lhe amo, lhe adoro". Mas essa afeição efusiva não é mais contabilizada, não entra na minha coluna de crédito. Não há mais contabilidade.

  Sobre os altos e baixos do sucesso.

  Esse fato é bem vindo, administrado e até planejado para ocorrer. Eu não quero estar todo dia na primeira página do jornal nem na primeira lista de execução. Tem muita gente para se partilhar o sucesso. Então, tem de ceder espaço para a chegada natural das coisas novas.

     Deus

     Só consigo ver a influência de Deus através de nós mesmos. Mas Ele não interfere sozinho. Deus, por exemplo, pode lhe acalmar em um momento de desespero, desde que você acredite, peça e admita a presença do mistério em meio à vida. Eu admito. Por isso, ninguém pode me chamar de ateu. Não sou mesmo, jamais!
    No entanto, Deus não é absoluta subordinação. Ele existe em mim, só existe por minha causa, porque eu quero, sei e preciso. Deus não existe para quem não precisa. Ele é o atendimento ao nosso chamado, mas sem chamado não há atendimento. E cada um tem o seu modo de abrir esse canal.
   Décadas atrás, eu passei por um período de descrença, negação e racionalidade, em que via o homem como o centro de tudo, até que precisei, recorri a Ele e me tornei crente de novo.
   Eu havia tomado a bebida indígena auasca e tive uma sensação de aproximação da dissolução, do que se poderia chamar de morte. Senti a minha integridade existencial ameaçada. Achei que ia desaparecer e tive muito medo. A única coisa que me amparou foi a invocação da ideia de Deus, algo maior do que eu e tudo. Naquele momento, eu precisei e me pus nas mãos do mistério de novo. Foi a ideia primária, infantil, inicial de Deus que me socorreu.
   Comecei, então, a sentir compaixão, que é a mistura da paixão de viver com a resignação de morrer. E, desde então, o meu último olhar sobre as coisas passou a ser mais compassivo.
  As primeiras visões que temos são em função de nossas necessidades na vida. Ao passo que a observação final implica você fazer um julgamento definitivo de si mesmo ou de qualquer outra coisa. Para fazê-lo, eu desenvolvi a compaixão. Se eu tenho um inimigo, por exemplo, alguém que não goste porque me antipatizo, me prejudica ou não faz o que deveria fazer do ponto de vista da vida e tal, eu sou levado a julgá-lo, mas tendo a não condená-lo porque aprendi a perdoar.
    A capacidade de perdoar é algo que conhecia teoricamente, que aprendi com os ensinamentos religiosos. Mas a gente só aprende a perdoar, de fato, quando a compaixão brota no coração, quando algo lhe força e leva ao perdão. No meu caso, ele brotou no meu coração quando eu me senti próximo da morte. Eu aprendi a perdoar, na verdade, quando senti que fui perdoado por Deus.