a rua é da gente

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quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Entre ato terrorista e golpe de Estado no Chile, uma declaração de amor à A. Latina.

     Que a data 11 de setembro remete de imediato aos atentados terroristas da al-Qaeda contra os Estados Unidos são favas contadas. O intrigante é que, aparentemente, a gente, o povo desta geleia geral brasileira, lembra sempre desta tragédia provocada por alguns kamikazes  fundamentalistas islâmicos que, em 2001, entre outras proezas, atingiram em cheio as torres gêmeas do World Trade Center, em NY, e ignora que, quatro décadas antes, ocorreu um ataque muito mais devastador ao povo chileno e, no rastro, de toda América Latina: o golpe de Estado, comandado pelo general Augusto Pinochet, no ano de 1973,  que fulminou com a democracia e provocou a morte do presidente Salvador Allende, que, no Palácio La Moneda, resistiu ao golpe até os 46 minutos do segundo tempo.
     Pinochet, diga-se de passagem,, contou com o apoio militar e financeiro dos Estados Unidos, além de terroristas e neofascistas locais, para derrubar o regime democrático e, de quebra, implantar uma ditadura militar, que torturou, sequestrou e/ou matou, milhares de chinelos, entre 1973 a 1990.
      O dia dos chilenos, vale ressaltar, durou 17 anos, 4 menos que o nosso, mas ele foi mais sanguinário e heroico, e, atualmente, mais surreal que todas as telas de Salvador Dalí. Afinal, um sujeito como Allende, que sacrificou a própria vida, cometendo suicídio ou sendo assassinado pelas tropas do exército que invadiram La Moneda - sabe-se que ele sofreu ferimento de projétil, de forma que corresponde ao suicídio -em prol de um projeto, um compromisso assumido com o povo,  convicções e coerência, é uma avis rara em um mundo em que se pode contar nos dedos, por exemplo, militantes de partidos políticos legalizados ou não e ativistas de movimentos no Brasil capazes de tirar viseiras nos olhos e/ou deixarem de ser coniventes e dar o comum tapinha das costas nas ervas daninhas que , pelos mais variados motivos, dias mais ou menos, rasgam e jogam, na prática, o seu discurso na latrina.
      Esta longa introdução, e ao contrário do que faz pensar, não se deve a, diretamente, nenhum dos assuntos mencionados, mas, sim, ao fato de hoje, por volta das quatro e meia da manhã, eu ter me deparado com uma nota no facebook do jornalista Alceu Castilho sobre o 11 de setembro da América Latina, que, como disse Graciliano Ramos, é de comover feito o diabo.
     Nela, ele, autor do livro Partido da Terra - como os políticos conquistam o território nacional ( editora contexto) e que também toca o blog, Outro Brasil e página Partido da Terra, entre outras atividades, fez uma belíssima declaração de amor aos povos da América Latina, além de a sua filha, descendente, de parte materna, de mapuches, chilenos e espanhóis. E, de quebra, promoveu uma grande reflexão, em especial, a nós, brasileiros, que, cá entre nós, somos e, muitas vezes, parecemos ser tudo, menos da América do Sul, como canta o mineiro/carioca Milton Nascimento.
     Eis o belo texto de Alceu Castilho, Eu e 11 de setembro, eu e minha filha, eu e meu continente - que, aliás, comove feito o diabo, expressão de Graciliano Ramos. ( aliás, fiquei tão comovida que pilhei o texto sem nem sequer dar um toque ao Alceu - um hábito, princípio meu que, enfim, transgredi)
   " 11 de setembro de 2013. Minha filha descende de mapuches e espanhóis, em boa parte bascos. Povos bravos, altivos. Resistentes. E se orgulha de sua ascendência chilena. Sabe muitíssimo bem quem foi o general Augusto José Ramón Pinochet Ugarte, e quem financiou (antes e depois dessa data-símbolo) esse assassino, esse líder de assassinos. Ela também é filha de 11 de setembro.
     Há 40 anos, um dia antes do golpe em Santiago, seu avô materno chegava ao Brasil. Também por esses detalhes familiares as datas são importantes. Eu que descendo de portugueses e portugueses e portugueses (e negros), diretamente de brasileiros, vejo nela diariamente a soma de influências históricas. Não somente um reflexo da saga dos meus bisavós, dos Castilhos, Carvalhos, Machados. Vejo migração (vejo economia) e vejo dedos políticos (vejo guerras). E, desta forma, reconstruo antropofagicamente a minha identidade.
      Do pai, que cresceu numa ditadura, minha filha ouve diariamente exclamações sobre o Brasil - e seus próprios assassinos, traidores, usurpadores. O 7 de setembro passa batido. Até porque a palavra independência soa como uma espécie de despropósito, um exagero. (Quem poderá chamar Dom Pedro I propriamente de um herói?) Em meio ao caldeirão de conflitos que pontua o discurso paterno, 11 de setembro afirma-se nela como referência. A data a ser lembrada. Com respeito aos heróis e desprezo aos covardes.
      Por aqui, o equivalente mais próximo do 11 de setembro talvez seja o 31 de março. Que também é 1º de abril. Até o dia do nosso conflito desdobra-se em uma mentira: quando foi mesmo a última vez que nos usurparam? Mas o 11/09 - o original, chileno, não o estadunidense - continua lá, imponente, em uma data única. Com seu sangue, sua infâmia. E, no nosso caso, uma história de migração muito próxima (esta reflexão não existiria sem esse fato) a moldar o imaginário familiar.
    Por aqui, o equivalente mais próximo do 11 de setembro talvez seja o 31 de março. Que também é 1º de abril. Até o dia do nosso conflito desdobra-se em uma mentira: quando foi mesmo a última vez que nos usurparam? Mas o 11/09 - o original, chileno, não o estadunidense - continua lá, imponente, em uma data única. Com seu sangue, sua infâmia. E, no nosso caso, uma história de migração muito próxima (esta reflexão não existiria sem esse fato) a moldar o imaginário familiar.
    Por causa de minha filha, e de sua pele mapuche, e de suas feições hispânicas, sinto-me também um pouco chileno. Populismo? Olho pragmático nos vinhos, nas empanadas? Nada disso. Eu, que já sou suspeitíssimo amigo do idioma vizinho (fã apaixonado que sou de cultura latino-americana, da literatura de nosso continente), que já li em Roa Bastos, García Márquez e outros a história de nossos ditadores sinistros, sinto ainda um pouco mais a dor de nossos hermanos.
     No Brasil costumamos viver em uma ilha. Linguística, cultural, política. Somos capazes de falar em inglês em plena América Latina. Mas nosso continente não é o de Obama e Hemingway, é o de Bolívar e Borges, é o de San Martín e Ernesto Sabato, de Cortázar e de Zumbi, de Neruda e Che Guevara, de Arlt e João Antônio, de Gabriela Mistral e Orides Fontela, de Galeano e Chico Mendes. De Graciliano e Vargas Llosa (sim, grandes escritores de direita e esquerda, de heróis não exatamente à direita), de uma das melhores literaturas do mundo.
    E, no entanto, mesmo isolada, a América do Sul se move em nosso entorno. Um continente de enormes escritores e músicos, de Glauber, de Botero, de uma diversidade monumental - ambiental, étnica. E que vê parte de seus filhos ignorar - surda - essa riqueza eloquente. Alguns, mais distraídos, atiçados por porta-vozes ridículos de um arremedo de nacionalismo, chegam a repetir uma narrativa recente, anti-portenha, paupérrima, míope em relação a um dos países mais interessantes do planeta (a Argentina).
   Que utopia a de que percebamos que nossas glórias vão muito além de Messi e Pelé, que nossas tragédias sejam compreendidas muito além de Maradona e Garrincha. Que a nossa indignação pelos camponeses brasileiros assassinados se some (quando ela vier) à indignação pelos indígenas guatemaltecos executados, pelos bolivianos explorados. Que a nossa culpa pelos guaranis humilhados e atropelados (quando ela vier) se some à culpa pelas violências contra os mapuches - esses resistentes.
   Escrevo tudo isso não somente pela insônia, mas porque me orgulho de amar incondicionalmente uma menina que tem em seu sangue essa história. Porque, em meio a esse amor, multiplicam-se os motivos racionais - estratégicos, geopolíticos - para que eu me declare, ainda que evidentemente um cidadão do mundo (pois a humanidade deveria pairar sobre as fronteiras), também um cidadão latino-americano.
   Porque a beleza do continente e a dor de seus povos e a sordidez de suas elites estão ainda aí, suficientemente palpáveis, suficientemente à espreita para que possamos construir, a partir dessa identidade mínima (sim, com suas contradições, com nuances que este modesto espaço não permite aprofundar), um pacto social menos abominável ".