a rua é da gente

a rua é da gente

sexta-feira, 20 de abril de 2012

A alemã que abriu mão da vida boa na Itália para cuidar de crianças carentes no sertão brasileiro.

     " Se cada um de nós pegasse uma dessas crianças sem chances na vida, esse país viraria a mesa tranquilamente", avalia Ursula Grattapaglia, que descobriu que havia algo além de desfrutar de uma vida cheia de privilégios e decidiu criar e educar crianças carentes numa fazenda em Alto Paraíso de Goiás. Lá, essa sobrevivente da II Guerra Mundial, ao lado do marido Giuseppe, deu futuro a centenas de brasileiros. A seguir, o depoimento dessa senhora pra lá de admirável, que tive a honra de conhecer, que dedicou boa parte de sua vida a melhorar o mundo com os próprios recursos e à ajuda de amigos.

     " Eu e Giuseppe tínhamos dois filhos, um bom apartamento, casa na praia, carro, uma vida estabilizada. Aparentemente, eu era uma mulher realizada. Morávamos em Turim, no norte da Itália, nas férias e nos fins de semana, íamos com nosso trailer para as montanhas e Montecarlo. Mas sentia que devia haver algo além de ganhar e gastar dinheiro e participar do movimento esperantista - adeptos do esperanto, língua auxiliar de comuniação internacional, falada por mais de 10 milhões de pessoas - do qual fazemos parte desde 1950 - Como não sabia que existia outra alternativa, eu deixava as coisas como estavam. Cuidava da minha família e fazia muita ginástica para manter o peso e caber dentro dos meus uniformes de trabalho. Aos 40 anos, eu só deixava meus dois filhos com meus sogros por dois ou três dias para eu fazer o que queria e era muito bem paga trabalhando como tradutora e intérprete de alemão, italiano, francês e inglês. Conheci o mundo inteiro, comi e dormi nos melhores hotéis. Abria os olhos e fazia 200 dólares por dia. Trabalhei em congressos científicos, GP'S de Fórmula 1, acompanhei o presidente da Fiat em exposições de carros e aviões. Levei altos executivos em banquetes, testemunhei grandes contratos internacionais e intermediei conversas entre ministros. Giuseppe era projetista responsável da Fiat e também recebia um ótimo salário.
     Em janeiro de 1973, resolvemos passar o natal no hemisfério sul e escrevemos para esperantistas do Chile, Argentina e Brasil. Todos responderam as nossas cartas, com exceção de um pessoal que abrigava e ensinava esperanto para crianças carentes na fazenda Bona Espero na Chapada dos Veadeiros, GO. Seis meses depois, uma sucessão de acontecimentos inesperados e inexplicáveis fez com que minha vida mudasse pelo avesso. Tudo começou no dia em que recebi a visita de um industrial, com quem mantinha uma relação profissional. Sem mais nem menos, ele falou: " Ontem, estava em minha casa de praia contemplando o mar quando fui surpreendido por uma visão. Nela, Giuseppe aparecia construindo um muro e você, fazendo pão". Em seguida, disse que nos viu com nossos filhos e a família dele vestidos com macacões e trabalhando com enxadas. Além de outras cinco pessoas sem fisionomia. Não satisfeito, esse senhor contou que uma voz havia  lhe dito que deveríamos ir para um lugar e fazer um trabalho muito especial para uma nova humanidade. Quis saber onde era, mas ele respondeu que a gente descobriria quando estivesse nele.
     No dia seguinte, eu e Giuseppe fomos ao centro de esperanto e soubemos que tinha uma carta de Bona Espero. Ao abri-la, fiquei sabendo que o trabalho na fazenda era tocado por cinco esperantistas. Me lembrei das cinco pessoas sem fisionomia, presentes na visão do industrial, mas não liguei uma coisa à outra. Respondi à carta dois meses depois, me oferecendo para levar o que desejassem pra a fazenda. Um mês depois estávamos em nossa casa de praia quando o industrial bate à porta para nos transmitir o recado que a tal voz havia lhe dado. A gente deveria levar sementes de árvores frutíferas européis para o tal do lugar, que ficava a sudoeste de Turim. Pela indicação, Enzo, o industrial, achou que o lugar poderia ser na Espanha, Ilhas Canárias, Córsega ou África do Norte. Nesse dia, falou que tinha visto uma casa escura iluminada por uma vela, que abrigava crianças brancas e pretas, um sistema estranho de aquecimento de água, na cozinha. E, nos arredores, uma barreira eletromagnética, uma cachoeira, um cavalo branco e cabritas se alimentando. Pra mim, ele tinha perdido o juízo de vez!
     No dia seguinte, fomos a uma reunião no centro de esperanto e havia outra carta de Bono Espero. Os esperantistas nos pediam que levássemos sementes frutíferas européias. Aí minha mente explodiu. Achei que Enzo tinha violado nossa correspondência. Mas ele não sabia esperanto nem que mantínhamos correspondência com o Brasil. Liguei pedindo que viesse à minha casa e então ele resolveu abrir o jogo. Falou que sabia das coisas, mas não entendia de onde vinham essas informações. Depois de ouvi-lo, pensei  " aqui tem coisa". É que já tinha vivido duas experiências espirituais fortes, em que me vi fora  do meu corpo, e sempre entendi que nossas individualidades são em última instância manifestações de uma consciência cósmica.
     Dois meses depois, no dia 15 de dezembro, Enzo nos visita e, entre outras coisas, avisa que tomaríamos uma grande decisão no dia 15 de janeiro. Vinte e quatro horas depois, recebemos mais uma carta de Bona Espero. Tudo o que ele nos falava ia se encaixando como peças de um quebra-cabeças: três visões, três cartas. Só queria saber se Bona Espero era ou não o lugar que ele havia descrito para nós. Desembarcamos em Brasília no dia 23 de dezembro de 19763 e fomos recebidos por um esperantista de Bona Espero. Descansamos no hotel e alugamos um carro com motorista. Na época, atravessar os 240 km que separam Brasília de Alto Paraíso durava 15 horas, trajeto que se faz hoje em três horas de carro. Quando entrei na casa, que mais parecia um barraco, logo vi uma mesa de madeira com velas acesas e cerca de 30 pessoas, entre elas muitas crianças. Era véspera de natal e elas não tinham nada para a ceia, uma miséria só.
     Fui conhecer a casa e encontrei na cozinha o estranho sistema de aquecimento desenhado por Enzo que, na verdade, é o fogão caipira. No dia seguinte, conhecemos a cachoeira, vimos os cavalos e as cabritas. Fiquei muito impressionada ao ver gente vivendo em condições de extrema pobreza. Fui me deitar com a certeza de que jamais esqueceria Bona Espero. " O que vou fazer?", me perguntava. Sabia muito bem o que era passar fome e não ter lugar decente para morar. Nasci em Berlim e tinha 6 anos quando foi deflagrada a Segunda Guerra Mundial. Passei por todos aqueles horrores, como o de me refugiar em buracos e túneis, me alimentar com migalhas de pão duro e ver soldados violentando mulheres nas minha frente. Sabia o mal o que meu povo havia feito para o mundo .... Por isso, pensei que seria fantástico trabalhar em Bona Espero. Mas, na realidade, não cogitei ficar lá. Decidimos conhecer outras cidades e depois embarcamos para a Europa. Enzo estava à nossa espera em Turim. Fomos juntos para casa, onde lhe contamos o que havíamos visto e ele disse: "Esse é o lugar, vamos pra lá". Às 4 horas da manhã, meu marido redigiu sua carta de demissão depois de trabalhar 25 anos na Fiat.
     A partir daí, começamos a nos desfazer de nossos bens e Enzo pôs sua fábrica e um edifício à venda. Foi então que a mulher e a nora de Enzo começaram a temer a mudança, e um exame médico indicando que ele tinha diabetes o tirou da aventura. Giuseppe então me disse: "Nós vamos. Não tenho medo nenhum. Além disso, podemos voltar senão der certo. No dia 1º de julho de 1974, embarcamos para o Brasil.
     Bona Espero era um mundo diferente. Era como viver uma nova vida sem ter morrido. Sentia uma liberdade que não existia na Europa. Meus filhos adoraram. Podiam andar a cavalo, nadar no lago e desfrutar desse panorama. Se fosse apenas uma experiência esotérica, talvez estivesse voltada para mim mesma. Porém percebi que podia ter uma vida útil e com qualidade. Em Turim, eu não tinha qualidade de vida. Morava perto de uma fábrica que produzia 7 mil carros por dia. Passava a mão nas janelas, móveis e me sujava com fuligem. Quarenta por cento da população sofria de efisema pulmonar. Além da poluição, convivíamos com os atentados dos extremistas de esquerda das Brigadas Vermelhas. Que futuro poderia dar para meus filhos?
    É claro que tive problemas de adaptação. Quando acabava a água do poço, calçávamos as botas e íamos até o lago descobrir o motivo do entupimento. Pouco depois, fizemos o encanamento. Porém a rede elétrica ainda não chegou na nossa fazenda de mil hectares. Até 1986, usei lampião de gás e ainda tomo banho frio para economizar energia, obtida através de fontes alternativas. Todas essas mudanças geraram consequências. Fui conhecer o kardecismo, a teosofia, lia todas as noites e adquiri um conhecimento fascinante. Meus filhos tiveram que estudar em Brasília e sofri muito. Só recebia notícias deles através de rádio-amadores. Dário é engenheiro florestal, com doutorado nos Estados Unidos, e Guido é economista e trabalha na embaixada da Itália.
     Desde o dia em que chegamos, até agora, temos recebido uma proteção total. Subia num jipe, pegava uma estrada horrorosa e nunca me aconteceu nada. Quando meu marido viajava, ficava sozinha com as crianças e, nesse tempo todo, apenas uma levou uma mordida de cobra. Aliás, nossa fazenda fica praticamente dentro do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros e nunca fomos atacados pelas onças. Mas já comeram nossos cavalos, bois e vacas. Nesses anos, criamos e educamos centenas de crianças e adolescentes com nossos recursos e a colaboração de amigos. Eles fazem vaquinhas para bancar alguns de nossos projetos e também mandam roupas, material escolar etc. Atualmente, temos 30 crianças e adolescentes em Bona Espero. Muitas delas chegam sem saber a idade, data de nascimento, sobrenome nem como é o próprio rosto porque nunca haviam olhado num espelho. Algumas tem dificuldades de aprendizado devido à falta de proteínas na primeira infância. Elas vem de famílias que moram em beira de rio, algumas são orfãs, outras foram abandonadas pela família. Tem pais que põem os filhos no lombo do cavalo, percorrem 40 km e os deixam aqui para estudar e ter uma vida melhor.
     O dia começa cedo em Bona Espero. Às 7 horas, todo mundo acorda, faz a higiene pessoal, arruma a propria cama e se organiza para limpar quartos, banheiros e a escola. Às 8 horas, fazem a refeição da manhã. Depois, cada um faz o que é necessário: cuida da horta, lava as próprias roupas ou trabalha na oficina. Todos os dias, elas quebram torneiras, camas, cadeiras e mesas e aprendem a consertá-las. E, finalmente, brincam, porque criança tem que brincar, até a hora do almoço, depois vão para a escola.
     As crianças são filhas da casa e, como tal, pensam, falam e agem. Nós comemos juntos e da mesma panela. Também damos chances para os jovens que anseiam por uma carreira profissional, mantendo alguns deles no apartamento que temos em Brasília. No momento, tenho uma menina de 18 anos que quer cursar relações internacionais e dois rapazes que querem ingressar na Aeronáutica.
     Acho que devo fazer algo para melhorar o mundo porque faço parte do planeta. Adquiro conhecimentos e os vou transformando numa vida material ética, de ajuda ao próximo. Poderia passar os dias assistindo à TV ou curtindo a natureza egoisticamente, mas tento colocar o que aprendi na prática. Quem não vive para servir não serve pra viver.
     Luto contra todas as dificuldades e vejo o resultado do meu trabalho. Olho essas crianças crescendo com alegria, auto-estima e segurança social. Vou deixar isso por quê? O maior problema do Brasil não é falta de dinheiro. É falta de formação profissional e educação ética. Se cada um pegasse uma dessas crianças que não tem chances na vida, esse país viraria a mesa tranquilamente"